Joleen nasceu e foi criada na Dakota do Sul, Estados Unidos
da América. Não conhece uma única casa por lar. Durante toda a vida vagueou pelo
estado americano, ora ao colo da mãe, uma mulher forte como uma torre de pedra,
ora assente na sua própria passada, uma passada tímida de quem não conhece as
pessoas e não sabe o que delas esperar. Joleen é loira e gorda como uma búfala
pequenina. Inquieta-se muito com sons. “Nunca me habituei aos sons das cidades”,
justifica. Todos os sons que conhece estão na Dakota do Sul. Veio para Hispéria
por conta de uma enfermeira. “Chama-se Maureen, conheci-a num vilarejo logo
depois da morte de minha mãe, atacada por formigas guerreiras. Não sei viver
sozinha, senhor.” Os olhos de Joleen esquecem a tarde encardida, as pessoas que
passam na rua e as pombas que vagueiam estranhas nos beirais. Maureen, a
enfermeira, conta mais de 90 anos e preocupa-se muito com o destino de Joleen.
Enuncia, de forma ritmada, os 100 últimos países que visitou e as 300 últimas
pessoas que tratou, a última das quais às voltas com uma naso-faringite - um
homem que dizia chamar-se “A minha cabeça é o céu”, de uma aldeia minúscula no
deserto do Botswana. “Joleen acompanha-me há 5 anos. Para nossa grande
desgraça, as suas mãos não acompanham os talentos para enfermeira. Caso contrário,
passar-lhe-ia, como a uma filha, tudo o que sei”. Estão em Hispéria há 3 dias e
procuram Joel Ramos, mitologista vocacional, para que as ajude a encontrar o
caminho de Joleen. Maureen olha carinhosamente Joleen e acaricia-lhe as faces. “Não
é culpa tua, minha querida Joleen”, diz. Joleen esconde a cara com as mãos para
que não se veja que chora.
Hispéria (ou Hespéria) 1. Uma das ninfas inácides concebidas pelo potâmoi Ínaco 2. Hispânia ou Península Ibérica (Hespérica), tal como referida por Camões 3. Cidades dos Estados Unidos da América (Califórnia e Michigan) 4. Asteróide descoberto em 1861 por Giovanni Schiaparelli 5. Espécie de insecto (Aphaenogaster hesperia) 6. Espécie de gastrópode (Inodrillia hesperia) 7. Região do planeta Marte (Planum Hesperia) 8. Espécie de borboleta 9. Jornal (Hesperia) académico de Arqueologia 10. Cidade da Península Ibérica para onde confluem viajantes de todas as partes do mundo e centro mundial de estudos em mitologia (Hispéria).
quinta-feira, 25 de outubro de 2012
terça-feira, 23 de outubro de 2012
Um país chamado Gonçalo M. Tavares
Muitos anos atrás, os habitantes de um país chamado Gonçalo
M. Tavares, os senhores, deixaram de utilizar advérbios nas suas conversas;
simplesmente deixaram de os utilizar, sem razão aparente, decreto ou notificação:
esqueceram-se da sua existência, digamos assim. O que começou nos advérbios
de modo, rapidamente se estendeu os advérbios de tempo e aos advérbios de
lugar. Alguns senhores do país ainda os guardaram para si em silêncio, no
interior das suas cabeças ou em pequeninos cofres escondidos num local remoto
da casa. Os advérbios tornaram-se de tal forma raros e preciosos que começaram a gerar cobiça
e inveja, e quando algum senhor os pronunciava porque se distraía corria sério
risco de sofrer uma agressão e ser mesmo espoliado dos seus preciosos
advérbios, ora porque lhe abriam a cabeça e os roubavam, ora porque o
torturavam até que confessasse em que lugar da casa os guardava. Mas a
calamidade não acabou aqui. A seguir aos advérbios, os adjectivos também
desapareceram misteriosamente. Nunca mais o dia esteve quente ou frio, nunca
mais as pessoas foram bonitas ou feias, tristes ou alegres, nunca mais as ruas
estiverem enfeitadas, nunca mais Wittgenstein foi silencioso ou barulhento,
gordo ou magro. E a seguir aos advérbios e aos adjectivos perderam-se as
conjunções. Nunca mais o senhor foi beber água à fonte porque tinha sede, ou o
senhor procurou uma sombra por causa do calor mas não encontrou nenhuma. Por
essa altura, as ruas tornaram-se caóticas, as pessoas não se falavam por
vergonha, ou se o tentavam não se entendiam, as lojas deixaram de vender porque
ninguém percebia os clientes, as repartições públicas tornaram-se ineficazes, e
não raras vezes um dia inteiro não chegava para atender o pedido de um senhor
apenas; também os portos e os aeroportos fecharam porque ninguém sabia explicar
quando deveria seguir a mercadoria, e as fábricas encerraram porque a cadeia hierárquica
e todos os sistemas de controlo deixaram de funcionar. O país entrou em colapso.
Por fim, perderam-se os substantivos e os habitantes esqueceram o nome das ruas, o
nome das pessoas com quem falavam e o próprio nome; deixaram de saber o nome
dos melros, o nome da lua e o nome dos santos. Limitavam-se a enunciar um conjunto
de verbos, quase sempre no infinito, cujo sentido de nada valia. Bem poderiam
os senhores gritar CORRER, SALTAR, PULAR, AGIR, que nada acontecia. Era como se
os verbos tivessem perdido a capacidade de gerar ou apelar a qualquer acção. Nesse
mesmo dia tudo parou e os senhores resolveram abandonar o país. Nunca em nenhum
êxodo se falou tão pouco.
segunda-feira, 22 de outubro de 2012
Jusafim
Jusafim vem de uma terra muito distante, para lá das nuvens
e para lá das próprias gotas de chuva. No seu país, garante, não chove vai para
200 anos, “toda a nossa água nasce com naturalidade nas rochas da montanha”. No
seu país, continua, um país pequeno onde apenas cabem ao mesmo tempo 500
pessoas, não há crianças, “todos somos velhos de rugas fundas como o esqueleto
das escarpas”. Jusafim foi casado por duas vezes.
- A minha primeira mulher, a maldita Juseína, era doce como
uma rola, macia como uma pena, mansa como um cachorro. Conhecia-a na festa de
S. Histogiado, o santo milagreiro das galinhas, durante a impiedosa procissão dos
30 giros. Juseína fora arrastada na perdição dos amores de Adulínea, a sua irmã
mais velha, por Rudolfo, um velho lobo-do-mar que comandava um não menos velho
barco de pesca dos Camarões, e que conhecera durante um fogacho mais expressivo
de uma tempestade em alto-mar. Tê-lo-á visto a partir do promontório de Akutiu,
chefiando com grande severidade os marujos, e por ele desenvolveu espécie de
paixão mística de que nem mil desencantamentos a retiraram. Juseína criou-me
dois filhos e duas filhas, nenhum dos quais vejo há mais de 15 anos. Saíram de
casa, todos eles sem excepção, com 14 anos, já homens e mulheres. Os rapazes
são pescadores de baleias e as raparigas dedicam-se a dedilhar a harpa e outros
instrumentos de cordas com grande precisão e agora tocam na banda musical das
80 ilhas, uma fanfarra potentíssima com mais de 500 executantes que percorre o
sudeste asiático e mais além. Juseína fugiu, com grande mágoa minha, numa noite
tão clara como o dia – o dia de Santa Iluminada. Nunca mais a vi. É como se uma
parte da minha vida tivesse sumido. Ademais, levou-me todos os seus retratos,
todas as suas roupas, e todas as panelas e pratos também.
Jusafim entra na sua pequena casa de adobes imaculadamente
branca e de dentro traz pela mão Amaguza, uma mulher linda e altíssima de olhos
verdes. Jusafim dá-lhe pelo queixo.
- Estou muito feliz com Amaguza. Conhecemo-nos há 3 meses e
logo aí decidimos casar.
Despede-se de mim e entra em casa. Amaguza segue-o docilmente.
Despede-se de mim e entra em casa. Amaguza segue-o docilmente.
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