Hispéria (ou Hespéria) 1. Uma das ninfas inácides concebidas pelo potâmoi Ínaco 2. Hispânia ou Península Ibérica (Hespérica), tal como referida por Camões 3. Cidades dos Estados Unidos da América (Califórnia e Michigan) 4. Asteróide descoberto em 1861 por Giovanni Schiaparelli 5. Espécie de insecto (Aphaenogaster hesperia) 6. Espécie de gastrópode (Inodrillia hesperia) 7. Região do planeta Marte (Planum Hesperia) 8. Espécie de borboleta 9. Jornal (Hesperia) académico de Arqueologia 10. Cidade da Península Ibérica para onde confluem viajantes de todas as partes do mundo e centro mundial de estudos em mitologia (Hispéria).

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Joleen



Joleen nasceu e foi criada na Dakota do Sul, Estados Unidos da América. Não conhece uma única casa por lar. Durante toda a vida vagueou pelo estado americano, ora ao colo da mãe, uma mulher forte como uma torre de pedra, ora assente na sua própria passada, uma passada tímida de quem não conhece as pessoas e não sabe o que delas esperar. Joleen é loira e gorda como uma búfala pequenina. Inquieta-se muito com sons. “Nunca me habituei aos sons das cidades”, justifica. Todos os sons que conhece estão na Dakota do Sul. Veio para Hispéria por conta de uma enfermeira. “Chama-se Maureen, conheci-a num vilarejo logo depois da morte de minha mãe, atacada por formigas guerreiras. Não sei viver sozinha, senhor.” Os olhos de Joleen esquecem a tarde encardida, as pessoas que passam na rua e as pombas que vagueiam estranhas nos beirais. Maureen, a enfermeira, conta mais de 90 anos e preocupa-se muito com o destino de Joleen. Enuncia, de forma ritmada, os 100 últimos países que visitou e as 300 últimas pessoas que tratou, a última das quais às voltas com uma naso-faringite - um homem que dizia chamar-se “A minha cabeça é o céu”, de uma aldeia minúscula no deserto do Botswana. “Joleen acompanha-me há 5 anos. Para nossa grande desgraça, as suas mãos não acompanham os talentos para enfermeira. Caso contrário, passar-lhe-ia, como a uma filha, tudo o que sei”. Estão em Hispéria há 3 dias e procuram Joel Ramos, mitologista vocacional, para que as ajude a encontrar o caminho de Joleen. Maureen olha carinhosamente Joleen e acaricia-lhe as faces. “Não é culpa tua, minha querida Joleen”, diz. Joleen esconde a cara com as mãos para que não se veja que chora.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Um país chamado Gonçalo M. Tavares



Muitos anos atrás, os habitantes de um país chamado Gonçalo M. Tavares, os senhores, deixaram de utilizar advérbios nas suas conversas; simplesmente deixaram de os utilizar, sem razão aparente, decreto ou notificação: esqueceram-se da sua existência, digamos assim. O que começou nos advérbios de modo, rapidamente se estendeu os advérbios de tempo e aos advérbios de lugar. Alguns senhores do país ainda os guardaram para si em silêncio, no interior das suas cabeças ou em pequeninos cofres escondidos num local remoto da casa. Os advérbios tornaram-se de tal forma raros e preciosos que começaram a gerar cobiça e inveja, e quando algum senhor os pronunciava porque se distraía corria sério risco de sofrer uma agressão e ser mesmo espoliado dos seus preciosos advérbios, ora porque lhe abriam a cabeça e os roubavam, ora porque o torturavam até que confessasse em que lugar da casa os guardava. Mas a calamidade não acabou aqui. A seguir aos advérbios, os adjectivos também desapareceram misteriosamente. Nunca mais o dia esteve quente ou frio, nunca mais as pessoas foram bonitas ou feias, tristes ou alegres, nunca mais as ruas estiverem enfeitadas, nunca mais Wittgenstein foi silencioso ou barulhento, gordo ou magro. E a seguir aos advérbios e aos adjectivos perderam-se as conjunções. Nunca mais o senhor foi beber água à fonte porque tinha sede, ou o senhor procurou uma sombra por causa do calor mas não encontrou nenhuma. Por essa altura, as ruas tornaram-se caóticas, as pessoas não se falavam por vergonha, ou se o tentavam não se entendiam, as lojas deixaram de vender porque ninguém percebia os clientes, as repartições públicas tornaram-se ineficazes, e não raras vezes um dia inteiro não chegava para atender o pedido de um senhor apenas; também os portos e os aeroportos fecharam porque ninguém sabia explicar quando deveria seguir a mercadoria, e as fábricas encerraram porque a cadeia hierárquica e todos os sistemas de controlo deixaram de funcionar. O país entrou em colapso. Por fim, perderam-se os substantivos e os habitantes esqueceram o nome das ruas, o nome das pessoas com quem falavam e o próprio nome; deixaram de saber o nome dos melros, o nome da lua e o nome dos santos. Limitavam-se a enunciar um conjunto de verbos, quase sempre no infinito, cujo sentido de nada valia. Bem poderiam os senhores gritar CORRER, SALTAR, PULAR, AGIR, que nada acontecia. Era como se os verbos tivessem perdido a capacidade de gerar ou apelar a qualquer acção. Nesse mesmo dia tudo parou e os senhores resolveram abandonar o país. Nunca em nenhum êxodo se falou tão pouco.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Jusafim



Jusafim vem de uma terra muito distante, para lá das nuvens e para lá das próprias gotas de chuva. No seu país, garante, não chove vai para 200 anos, “toda a nossa água nasce com naturalidade nas rochas da montanha”. No seu país, continua, um país pequeno onde apenas cabem ao mesmo tempo 500 pessoas, não há crianças, “todos somos velhos de rugas fundas como o esqueleto das escarpas”. Jusafim foi casado por duas vezes.
- A minha primeira mulher, a maldita Juseína, era doce como uma rola, macia como uma pena, mansa como um cachorro. Conhecia-a na festa de S. Histogiado, o santo milagreiro das galinhas, durante a impiedosa procissão dos 30 giros. Juseína fora arrastada na perdição dos amores de Adulínea, a sua irmã mais velha, por Rudolfo, um velho lobo-do-mar que comandava um não menos velho barco de pesca dos Camarões, e que conhecera durante um fogacho mais expressivo de uma tempestade em alto-mar. Tê-lo-á visto a partir do promontório de Akutiu, chefiando com grande severidade os marujos, e por ele desenvolveu espécie de paixão mística de que nem mil desencantamentos a retiraram. Juseína criou-me dois filhos e duas filhas, nenhum dos quais vejo há mais de 15 anos. Saíram de casa, todos eles sem excepção, com 14 anos, já homens e mulheres. Os rapazes são pescadores de baleias e as raparigas dedicam-se a dedilhar a harpa e outros instrumentos de cordas com grande precisão e agora tocam na banda musical das 80 ilhas, uma fanfarra potentíssima com mais de 500 executantes que percorre o sudeste asiático e mais além. Juseína fugiu, com grande mágoa minha, numa noite tão clara como o dia – o dia de Santa Iluminada. Nunca mais a vi. É como se uma parte da minha vida tivesse sumido. Ademais, levou-me todos os seus retratos, todas as suas roupas, e todas as panelas e pratos também.
Jusafim entra na sua pequena casa de adobes imaculadamente branca e de dentro traz pela mão Amaguza, uma mulher linda e altíssima de olhos verdes. Jusafim dá-lhe pelo queixo.
- Estou muito feliz com Amaguza. Conhecemo-nos há 3 meses e logo aí decidimos casar.
Despede-se de mim e entra em casa. Amaguza segue-o docilmente.